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Avenida MarginalA democracia do gosto

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Texto de Pedro Romano [colocado por mim devido a dificuldades técnicas]
O Partido Socialista quer proibir os piercings na língua. À primeira vista, esta proposta parece ser desajustada, altamente castradora das liberdades individuais, paternalista até ao vómito e insuportavelmente ditatorial. Mas isto é só à primeira vista. Um olhar mais atento revela que estamos perante uma verdadeira questão de saúde pública. Há externalidades envolvidas e nunca se sabe onde os meninos vão acabar por meter a língua.

O Pedro Morgado tem razão quando fala de estatização do gosto. Mas penso que não está a olhar para o quadro todo. Esta medida é apenas a face mais visível do paternalismo que ainda dá cartas na política nacional, e do qual este Governo tem sido um dos mais entusiastas arautos. A tendência tem raízes salazaristas mas para a desmontar não é preciso recorrer à história ou à antropologia: ela bebe de uma crença bastante arreigada que quase todos alimentam no seu íntimo – lá no fundo, todos sabemos o que é melhor para os outros.

Isto não seria um problema se o devaneio cruzasse a mente de um Silva qualquer. A ideia só ganha contornos mais gravosos quando vem da consciência superior de um deputado. É um dos paradoxos da democracia. Porque um iluminado se lembrou de que os piercings ficam mal, vamos todos ter de os tirar da língua. Afinal, não é só o ministro Santos Silva que anseia por controlar as línguas alheias.

Esta questão põe em evidência um dos problemas dos sistemas democráticos. A democracia foi sempre uma ideia atractiva porque invertia a lógica que durante séculos vigorou na Europa (e, de forma mais ou menos semelhante, um pouco por todo o planeta), com o líder supremo a mandar e o povo oprimido a ser mandado. Mas a democracia não controlada é um sistema apenas um pouco melhor do que esse: a maioria manda e a minoria é mandada. O princípio é o mesmo da ditadura; só muda o alcance e a subtileza do exercício da força.

São necessários mais gatilhos de segurança contra esta tutela estatal da vontade alheia. Mais limites ao poder que garantam que o Estado legisle apenas sobre o que é do domínio público e que deixe para a vida privada dos cidadãos aquilo que diz respeito à vida privada dos cidadãos. No fundo, um sistema que deixe de pressupor que quem está no poder ganha, como que por direito divino, competências sobre as preferências alheias. Porque é no mínimo irónico que um homem tenha direito a escolher o Governo que dirige o país e não possa ter uma palavra a dizer no destino que dá à sua língua.

10 comentários:

  1. Finalmente, um fantastico texto de Pedro Romano.

    Parabens!

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  2. Em que é diferente uma democracia de um sistema tribal?
    1. Escolhemos um líder?
    Não mais que eles... votamos naqueles que nos são apresentados pelas classes dominantes;
    2. Pagamos impostos?
    Não menos que eles... ainda que noutras formas;
    3. Exercemos cidadania?
    Não mais que eles... eles pela força, nós pela palavra (eles com maior impacto)...
    4. Temos liberdade de expressão?
    Temos(?). Eles não.
    5. Podemos fazer o que quisermos sem prejudicar directamente terceiros?
    Podemos... demais. "Democratizou-se " a ideia de que a Democracia se materializa quando podemos fazer e dizer aquilo que bem entendemos...

    Vivam eles, viva o tribalismo...

    Façam furos na língua, tatuem o corpo (os tribalistas faziam-no), usem calças presas nos joelhos, usem cuequinhas de fio a atravessar o fundo das costas, passem 12 horas do dia com headphones nos ouvidos, reinventem o Português com kappas, abreviaturas e outros hieróglifos, não votem, não vão às aulas, façam o que bem vos entender.... afinal isto é uma DEMOCRACIA...

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Paradoxo da democracia. Escolhemo-los a eles, e eles querem dominar-nos a nós.
    A questão saude publica está a tornar-se febril.

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  5. Esta proposta do PS parece um misto de uma proposta do CDS-PP com uma do BE. E isto vindo do partido que levou a referendo a IVG e tanto falou da liberdade de escolha e da saúde pública. Se a higienização e a certificação de qualidade dos tais "salões" é uma preocupação perfeitamente legítima, a outra parte é completamente incoerente com as causas recentes que o PS adoptou.

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  6. http://palcopiniao.blogspot.com/search/label/C%C3%82MARA%20MUNICIPAL%20DE%20COIMBRA%20URBANISMO

    DIVULGUE ILEGALIDADES... OBRIGADO!

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  7. Texto fabuloso e acertado. Aqui está uma opinião que gostava de ter escrito.

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  8. De facto, um texto merecedor de não só uma mas de muitas leituras :)

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  9. Bom texto sobre mais uma questão vergonhosa.

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  10. Um dia, se deixarmos, claro, iremos viver como na Antiga China de Mao Tse Tung em que todos vestiam de igual modo; além da proibição do fumo ( concordo em parte) em locais públicos, qualquer dia proibem-nos também, como li num jornal de hoje de distribuição gratuita, de podermos "ajustar as partes masculinas em péblico, coisa menos bonita mas necessária).
    Na verdade o que me parece implícito é que as liberdades e garantias individuais começam a ser violentadas. Há inúmeros exemplos disso não só em Portugal como por esse Mundo fora.
    Um dia desses, vão obrigar-nos a vestir gravata e fato domingueiro quando formos a uma repartição pública
    Abraço

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