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Até Que a Morte os Separe

“Quanto mais me bates mais eu gosto de ti.” Devem ser danos colaterais, na aplicação da sabedoria popular, as 31 ou 32 vítimas mortais de violência doméstica, todas elas mulheres, só neste ano em Portugal. Não haverá país ocidental, aliás, onde ditados ganham a expressão trágica de Mandamentos como em Portugal. E no que respeita ao casamento, roçam em autoridade o efeito dissuasor da lapidação.

O casamento, assim que consumado, ganha esta espécie de redoma cultural onde não entra sequer Estado de Direito - o mesmo que parece medir-se em quantidade de polícia. Quem se casa, fica, de imediato, refém do mesmo e aparte de qualquer dever ou direito. Não há snipper que faça mira à esfera conjugal, pelo impedimento moral de um outro mandamento da albardada sabedoria popular: "entre marido e mulher, não se mete a colher". Nem GNR, nem ninguém, pelos vistos.

Em Portugal assiste-se a uma violenta discussão conjugal com a mesma frieza sádica de uma tourada de morte em Barrancos, a diferença é que esta é acossada pela indiferença e pelo imobilismo.

Não admira, então, que a violência doméstica não tenha ondas nem o mediatismo do resto. É um universo paralelo, doentio, a que assaltos a bancos e postos de gasolina chegam a não fazer frente na crueza. Na perspectiva do Presidente de República e da aparente generalidade das pessoas, o casamento é uma mera cruz que se carrega. E não deixa de ser cristão o sacrifício. Mas se para elas existe Céu, para eles parece que não existe o Inferno. Este calvário da mulher, da esposa, portuguesa, como em tantas outras culturas, é uma mera pedra no caminho da santidade. É, como dizia Nietzsche, consequência da centralização da existência individual no além, para lá da morte.

No mesmo sentido, a sociedade portuguesa emburka esta realidade como manifestação própria do casamento, como expressão inerente da responsabilidade moral em mantê-lo, como obrigação. É uma sociedade que normaliza a violência na intimidade. E se não vê nisto motivo de denúncia, reflexão profunda e de intervenção dos mecanismos da Lei, tem que olhar os restantes fenómenos de criminalidade com o mesmo estoicismo fatalista em troca de um lugarzinho no Paraíso. É mais um fardo, se não quiser entrar em constante contradição.

4 comentários:

  1. Vítor Pimenta, se algum dos cônjuges for vítima de agressão pode pedir o divorcio com base em violação dos deveres conjugais.Consequentemente não será obrigado a manter o casamento.Caso o divórcio culposo desaparecesse o cônjuge agressor sairia beneficiado porque o agredido iria pedir sem mais o divórcio permitindo que o outro se safasse sem consequências.
    Nesse caso o agressor ainda poderia ter direito a uma divisão equitativa dos bens ou até à guarda dos filhos, quiçá.
    O casamento é um contrato e como tal as partes não podem assumi-lo e quebra-lo a qualquer momento sem consequências.
    Imagine também que uma das partes era vítima de violência e estava em inferioridade finaceira face ao outro.O agressor pedia o divórcio, safava-se de ser considerado como culpado na quebra do vínculo e a outra parte ficaria na lama...

    O que está em causa é a ineficácia das autoridades no que respeita à protecção em caso de violência doméstica e na existência e medidas que permitam proteger a parte mais fraca.
    O problema não está no casamento ou nos pressupostos do divórcio.
    Não se pode criar uma imagem de que não há consequências porque isso seria o fim da instituição casamento.
    Digamos que numa cultura de facilitismo as pessoas têm de aprender a pensar antes de tomarem decisões tão importantes como casar.
    O mais curioso é que todos os que criticam o casamento são precisamente aqueles que mais casam.

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  2. Infelizmente em Portugal a necessidade das aparências existe. Isto porque a mentalidade católica incutida em cada um de nós desde nascença ensina que o valor da família se sobrepõe a coisas tão banais como o valor da própria vida. E que o amor-próprio, principalmente numa mulher, deve apenas servir para que se vista e se comporte bem publicamente para manter o nome do marido.

    Felizmente as coisas estão a mudar. E o casamento é um compromisso, que muitos assumem sem assinar papeis e sem celebrações em igrejas, que só suportámos se as coisas correrem bem. É verdade que os sentimentos que juntam as pessoas não se mantêm os mesmos para uma vida inteira, mas há limites que não se podem quebrar. Uma amizade eterna, com respeito é o minimo.

    Acredito profundamente que está na hora de publicitar novas formas de pensar. A violência doméstica é crime, e facto mais que suficiente para que duas pessoas se separem.

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  3. Com certeza. Não estou a por em causa a "instituição" casamento como acordo cuja desvinculação tem consequências, estas previamente negociadas.

    Agora limitei-me a apontar a visão da sociedade portuguesa, de um ponto de vista cultural, face ao casamento e de como esta visão da "instituição" deturpa e limita o alcance do Estado de Direito.

    A ineficiência das autoridades é no meu ver fruto da noção de santuário que temos do casamento, (des)harmonia que tem tanto de fatal como de imperturbável.

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  4. Amigos, tudo o que está dito acima deve ser meditado. Mas... não batam no "casamento católico". Sabem, toda a gente sabe, que Cristo, na sua doutrina, não mandou bater em ninguém. Basta ler o que diz S. Paulo a respeito do marido e da esposa. Embora comece por dizer "que a esposa seja submissa ao seu marido" diz logo a seguir: "maridos, amai as vossas esposas como Cristo amou a sua igreja". Ora Cristo amou a sua igreja (o seu povo) dando a vida por ele. Não há muitos maridos assim, pois não?
    O que falta para acabar com esta tragédia social (e moral) é a tal noção de "acordo". Acordo para respeitar: de lealdade, respeito, de cavalheiros. Nem é preciso falar naquele "amor paixão" mais próprio dos romances. Estes, porém, não passam disso: romances. Mesmo aqueles esposos que estão muitos anos (toda a vida) em constante construção, em permanente entendimento e compreensão, será que vivenciaram esse "amor paixão" ou passaram os seus dias a respeitarem-se e, neste respeito foram construindo uma "teia" de amor mesmo sem disso fazerem alarido.
    O que falta na sociedade de hoje, mais do que noutros tempos, é o sentido do respeito pelo seu semelhante, esposo ou não. Este valor está-se a perder. Já não existe em grande número dos nossos dirigentes políticos que, da tribuna dos meios de comunicação, revelam quão baixos são os seus sentimentos de humanidade tratando os concidadãos como números ou como carneiros de um rebanho qualquer. E não são estes exemplos que os jovens "agarram" mais depressa? Daí que o professor, o polícia, o patrão, o funcionário de uma repartição ... não prestam, são desprezíveis. Que programas televisivos têm como objectivo o incentivo de boas maneiras, bons costumes, boa higiene física e mental? Nenhum. Todos procuram audiências "vomitando" inqualificáveis disparates. Desculpem que já disse demasiado. A. Costa Gomes

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