Intercidades Lisboa-Porto, 3 de Maio de 2009. Quis a má sorte que um acidente atirasse uma morte para a linha e, por via disso, a viagem durasse o dobro do previsto. Maria sentou-se a meu lado ainda antes de supormos que a paragem do comboio para a remoção do malfadado cadáver seria tão longa que a conversa havia de tornar-se inevitável.
O vestir andrajoso, os dentes quebrados, enegrecidos e tortos, a face sombria e o semblante entristecido expunham uma qualquer história infeliz que imaginei antes de supor que ainda a ouviria durante aquela viagem. Filha mais nova de uma fratria de seis irmãos, Maria cedo foi atirava para a vida em toda a sua crueza e crueldade. Casou com dezassete anos. Ele era alcoólico e, etilizado ou não, batia-lhe quotidianamente com as mãos, os pés, as colheres de pau, as cadeiras, as garrafas... batia-lhe no corpo e no espírito, abusando-a até ao limite do suportável.
Corria a década de oitenta e Maria vivia acabrunhada numa pequena aldeia de Trás-os-Montes. Sofria num silêncio ensurdecedor, apenas quebrado por uma denúncia ao padre, em confissão, que lhe revelara tratar-se de um teste em vida, uma autêntica cruz (como a de Cristo) para ser aceite com paciência e capacidade de sofrimento. E assim fez. Maria suportou várias violações e pariu três filhos. O terceiro, nascido no dealbar da década de noventa, foi violentamente agredido in utero, tendo nascido com sequelas irreversíveis que não tem dúvidas em atribuir aos maus tratos perpetrados pelo pai.
Cansada de suportar o insuportável e com três filhos nos braços, também eles repetidamente vítimas de maus tratos, Maria avançou com um pedido de divórcio que se arrastou interminavelmente nos tribunais e na vida. Valeu-lhe a coragem de começar de novo e a boa vontade de algumas amigas e vizinhas.
«Na aldeia em que eu vivia foi o primeiro divórcio...» conta sem voz tremente nem olhos encharcados, mas com a frieza de quem de tanto sofrer verdadeiramente se tornou quase insensível ao sofrimento discursivo. «Fizeram-nos de tudo. Desde bater ao meu pequeno por ser filho de pais divorciados até olharem-me recriminadoramente por ter deixado o pai entregue ao desgosto que afogava em álcool».
A história de Maria é uma história entre muitas e, como muitas, tem a virtude de nos despertar para a discriminação do que não é vulgar. Tal como Maria, também hoje há muitas Marias e Manéis que sofrem cruelmente nas nossas ruas, nos nossos bairros, nas nossas aldeias, nas nossas cidades e nas nossas famílias por não serem a regra, por serem diferentes, por não serem vulgares, por serem os primeiros... Sofrimento que merece aceitação e compreensão, mas que a moral vigente teima em censurar.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Mais um excelente texto a fazer-nos ver quanta maldade existe no preconceito. Parabéns!
ResponderEliminarparabens Pedro, até me arrepiei ao ler o texto. Realmente há muitos preconceitos estabelecidos pela sociedade e algumas instituiçoes, que são tipo cruzes a carregar, só que estas em vez de darem azo ao sofrimento por Cristo(pelo bem), parecem ser antes preces, para satisfazerem os deleites e prazeres terrenos ao Diabo.
ResponderEliminarParabéns Pedro pela beleza das palavras de tão cruel realidade.
ResponderEliminarAo ler este texto, recordei um exemplo muito parecido que ocorreu comigo na recente peregrinação que fiz. Um exemplo de alguém aqui de bem perto que viveu um drama parecido e que demonstra que muito há ainda a evoluir nesta nossa sociedade.
Mais uma vez parabéns pelo texto.