Avenida Central
| Partilhar
Avenida do Mal

Bonecas de Porcelana

A área delimitada pela Trindade e Santa Catarina, vigiada pela torre do Jornal de Notícias, no Porto, é sabido território de travestis e transexuais. Quase sempre aos pares, não vão ser agredidas. A cidade não tem muito com que se orgulhar na sua história recente.

O encardido da carrinha do Projecto VAMP da Liga Portuguesa de Profilaxia Social [onde fiz voluntariado nas últimas semanas] ganha cor e o perfume das suas tragédias, amores e desamores, mas riem-se com elas e com a vida. Pouco mais lhes podia sobrar. Muitas têm um namorado e as fontes de rendimento repartem-se entre os espectáculos que dão em bares da cidade e o que tiram da rua. Fará parte da cultura Transgender, penso. O patronato conservador também dificilmente lhes daria outro trabalho e ali ganham bem mais dinheiro, para pagar os saltos altos, a maquilhagem, as lantejoulas, as hormonas e as cirurgias.

Uma das transexuais que mais descaradamente se instala no interior da carrinha, revela-me que começou a tomar hormonas aos 13 anos por sua iniciativa. Adquiriu-as facilmente na farmácia. A única vez que recorreu ao médico foi com o propósito de implantar silicone nas mamas – pagou e ele calou. Queixa-se que a classe médica não as compreende e as tenta influenciar do contrário.

Disse, como se fossem todos. Mas não generalizando, vai um fundo de verdade. Não há preconceito e paternalismo que não medre em muita cabecinha de profissional de saúde. A classe médica – e caia o Carmo e a Trindade – não é tão informada como parece. Nos distúrbios de identidade de género então, é uma confusão muito grande. Os pais chegam aos consultórios com eles pequenos e pequenas, a queixarem-se que brincam como não deviam brincar, que ensaiam as poses dos do outro lado. Debaixo daquele corpo neutro da infância, limpo e angélico, assexual, sobram coisas, que na mente das crianças, não deviam estar ali. Minimiza-se e vai-se dando demasiado tempo ao tempo.

Uma negligência, pois quando investigados e diagnosticados precocemente, com uma intervenção hormonal que retarde ou que modifique o rumo das alterações impostas na puberdade, podem obter-se resultados sem os traumas do semblante ossudo, a pedir mais de quantas intervenções cirúrgicas na idade adulta.

A transexual de que falo, começou tão jovem que do rosto e do corpo pouco mostra em réstia de masculino. É uma mulheraça, que engana qualquer desconsolado de boa família. Mas correu e corre riscos porque se deparou, num consultório, com um rosto tacanho e ignorante, tão igual aos dos que passam e as insultam na rua.

10 comentários:

  1. "MÉDICO QUE SÓ SABE DE MEDICINA, NEM DE MEDICINA SABE." Abel Salazar.

    ResponderEliminar
  2. Sim, de facto a questão de orientação sexual é certamente algo para o qual a classe médica não se encontra preparada. Joga maioritariamente com o senso comum e com as receitas que a sociedade dispôe sem necessitar de ir aos consultórios.

    ResponderEliminar
  3. Caro JRV,

    As questões da sexualidade são uma das matérias em que as escolas médicas devem investir em termos de formação dos seus quadros.

    Mas não é um problema de Portugal. Há uns 3 anos li no BMJ (British Medical Journal) um artigo em que se demonstrava que os estudantes de medicina eram mais homofóbicos que a sociedade em geral. Preocupante.

    ResponderEliminar
  4. Excelente texto, Vítor. Aliás, como sempre!

    ResponderEliminar
  5. Vitor tu mais o Marco Gomes façam uma lista à Câmara de Cabeceiras de Basto. não escrevam, só, actuem politicamente. O Barreto começa já a tremer.

    ResponderEliminar
  6. O Barreto começa já a tremer?
    Era melhor ir à consulta, não?

    ResponderEliminar
  7. Obrigado Max, pela referência. :)
    E como dizes, há ignorância também na classe jurídica e outras tantas. E não é o que se vê em quase tudo fique fora da sexualidade da "norma"?

    JMF:

    Vale o seu entusiasmo e apoio. No entanto, não me parece que haja massa crítica suficiente em Cabeceiras de Basto que dê para uma alternativa bem suportada. Mas fico embevecido. :)

    ResponderEliminar
  8. Insiste nas criticas construtivas e aponta alternativas. Tenho a certeza que o poder actual espreita os blogs do teu concelho e "cria" testas de ferro para os combater.

    Curiosamente na última Assembleia Municipal de Vizela onde estou sózinho ( BE), a blogosfera foi falada várias vezes para o mal, claro. E notava-se uma irritação num poder absolutíssimo do PS, creio que mais do que em Cabeceiras.

    Não é necessário ter uma equipa toda 5 estrelas. Olha que os votos vêm de onde tu menos esperas.

    ps. Em 2005, fui candidato à AM de Vizela com uma equipa de amigos não fiz campanha estava extremamente doente. Tivemos 577 votos, conhecia talvez 50 votantes. Fui eleito, fiquei estupefacto (5.5%).

    ResponderEliminar
  9. Obrigada pelo texto, que gostei de ler (e concordo mais que completamente com uma intervenção precoce, que evita muitos problemas, a nível emocional, físico, social e familiar) - ficam aqui algumas notas (amigáveis :), e o convite para visitarem o FishSpeakers, onde podem ler um pouco mais sobre a temática da transsexualidade.

    "Pouco mais lhes podia sobrar. Muitas têm um namorado e as fontes de rendimento repartem-se entre os espectáculos que dão em bares da cidade e o que tiram da rua. Fará parte da cultura Transgender, penso. O patronato conservador também dificilmente lhes daria outro trabalho e ali ganham bem mais dinheiro, para pagar os saltos altos, a maquilhagem, as lantejoulas, as hormonas e as cirurgias."

    Creio que não se pode dizer que há uma cultura transgénero em si (e de notar que transsexualidade e transgénero são conceitos diferentes), porque a população transsexual é uma população tão diversa e diferente entre si como qualquer outra - apenas a une a transsexualidade e o processo de transição, dimensões que são vividas de maneira diferente por pessoas diferentes - e essa dimensão é apenas uma entre as muitas que cada ser humano tem.

    E, da mesma maneira que podemos encontrar pessoas transsexuais a prostituirem-se na rua, também as podemos encontrar em escritórios, consultórios, livrarias, farmácias, universidades, ou qualquer outro lugar. Podem ter (e têm) qualquer profissão, podem ser (e são) de qualquer extracto sócio-económico, podem ter (e têm) qualquer nível académico, e podem tão facilmente usar sapatilhas como usam saltos altos, dispensar maquilhagem como a pôr, nunca ter visto uma lantejoula como a terem visto, serem homens como são mulheres (já agora, existem mais homens transsexuais do que mulheres - embora sejam menos visíveis) e passarem pelas outras pessoas, na rua, sem ser obrigatório o reconhecimento, por qualquer característica individual, como transsexuais. De facto, este retrato - só mulheres, heterossexuais, com maquilhagem, "plumas", na prostituição, etc. - é de uma minoria da população transsexual. O resto de nós tende a ser tão pacato e comum quanto nos deixam ser - o que nem sempre é fácil...

    Gostava também de deixar a ressalva de que, embora existam muitos profissionais de saúde que não têm preparação (sobretudo a nível humano e da empatia básica) para lidar com pacientes transsexuais, também já os existem com capacidade para isso. Já passei pelos dois tipos, e o que mais surpreende é que aqueles que mostram a maior capacidade, empatia, conhecimentos, preocupação pelo bem-estar do paciente, não são considerados "especialistas" pelo sistema, enquanto alguns são, mas sem saberem sequer que a transsexualidade não é uma orientação sexual (o que se aprende em 30 segundos através da wikipédia!...)

    "JRV disse...
    Sim, de facto a questão de orientação sexual (...)"

    A transsexualidade não é uma orientação sexual - as pessoas transsexuais tanto podem ser heterossexuais, como gays, lésbicas, bissexuais, ou assexuais. Uma mulher transsexual (alguém que nasceu com uma biologia masculina, mas que fez a transição para o feminino) pode-se sentir atraída por homens, caso em que são consideradas heterossexuais (cerca de 60%), mulheres, caso em que são consideradas lésbicas (30%), ambos os sexos (10%), ou nenhum (~1%), com percentagens um pouco diferentes para os homens transsexuais.

    ResponderEliminar
  10. Obrigado Siona pela tua passagem por aqui.

    Realmente, deixa-me ressalvar esse apontamento de que "orientação sexual" é diferente de "identidade de género" que é o que aqui se fala.

    Gostei dos teus esclarecimentos e procurarei (in)formar-me ainda mais nesta área. :)

    ResponderEliminar

Antes de comentar leia sobre a nossa Política de Comentários.

"Mi vida en tus manos", um filme de Nuno Beato

Pesquisar no Avenida Central




Subscreva os Nossos Conteúdos
por Correio Electrónico


Contadores