O progressivo afastamento dos cidadãos relativamente aos políticos e à política e o evidente esmorecimento da cidadania activa têm vindo a adquirir proporções preocupantes que poderão fazer perigar as bases do sistema político português. Nos últimos tempos, a expressão «estudo técnico» passou a integrar o léxico político com particular regularidade, invariavelmente para justificar decisões cujos impactos são difíceis de assimilar pela generalidade das pessoas.
As maternidades fecham porque os «estudos técnicos» assim ditaram, as urgências são reorganizadas de acordo com «estudos técnicos», a melhor localização para o aeroporto foi decidida por «estudos técnicos» e por aí em diante... O chorrilho de «estudos técnicos» é indizível e interminável, mas a estratégia está a funcionar com relativo sucesso. Um «estudo técnico» é sempre um poderoso amortecedor dos sentimentos negativos relacionados com as medidas altamente impopulares que vão sendo propostas.
Além do mais, o processo é facilmente controlável pelo poder político, encontrando-se à margem do jugo crítico da auto-regulação que salutarmente medeia a maioria das discussões científicas e técnicas. Não é por acaso que a escolha das entidades e peritos para a realização dos diferentes estudos é efectuada com todo o cuidado, passando a imagem de que se tratam de «comissões científicas/técnicas independentes.» Outro aspecto essencial, meticulosamente preparado, diz respeito à tutela da divulgação dos resultados para a comunicação social, normalmente a cargo das entidades que encomendam os estudos (1).
Este processo enferma de outros males. Desde logo, a ausência de sentido crítico por parte da maioria dos jornalistas, entregues à ingrata tarefa de meros transcritores de notas oficiais. Depois, o secretismo metodológico que envolve a maioria destes estudos - a opinião pública e as elites científicas raramente têm acesso a todos os dados em análise, limitando-se a conhecer os relatórios oficiais que, por vezes, mais não são que uma selecção da informação que interessa. Por fim, o défice de coragem por parte da esmagadora maioria dos especialistas independentes para, de uma forma sistemática, criticarem positiva ou negativamente os «estudos técnicos» que vão sendo publicitados.
Esta panóplia de perversões e contigências está a esvaziar o debate político e, pior que tudo, a enviezar o desejável confronto entre diferentes opiniões técnicas e científicas. Eleitos para decidir, os governos aceitam com cada vez maior naturalidade que o rumo seja traçado pelos tais «estudos técnicos», que, por sua vez, vêem a sua credibilidade ameaçada junto da opinião pública.
O «caso Ota» é paradigmático. Durante anos, sucessivos governos, sustentados por inúmeros «estudos técnicos», foram convencendo o país de que a construção de um novo aeroporto na Ota era a decisão política e técnica mais condicente com as necessidades do país. E nós acreditámos. Não fora a irreverência, a persistência e a coragem de alguns cidadãos, com o patrocínio do Presidente da República, e ainda hoje continuaríamos a acreditar que os políticos e os técnicos nos haviam oferecido a melhor solução. Agitando as mesmas armas com que os governos sustentaram a hipótese Ota, acabou por se demonstrar que Alcochete seria uma localização mais vantajosa. O governo aceitou os resultados de um novo «estudo técnico» sem reservas, assumindo aquela proposta como sua.
Se este desfile de avanços e recuos, de estudos e contra-estudos e de certezas enunciadas para depois desdizer não servir para mais nada, que o «caso Ota» nos proporcione duas importantes lições: a primeira é a de que a sobrevivência da ordem política vigente depende da coragem para que as decisões, mesmo não dispensando pareceres técnicos e científicos, voltem a ser politicamente assumidas (2); a segunda é a de que a intervenção cívica e cidadã vale mesmo a pena. Felizmente!
(1) Quanto ao estudo do LNEC, Vital Moreira estranha que «contra todas as indicações (incluindo as que foram filtradas para a opinião pública), o LNEC não se limitou a avaliar separadamente cada um dos sete factores analisados, tendo-se permitido declarar um vencedor aos pontos (4 contra 3).»
(2) O mesmo Vital Moreira, afirma que a escolha da localização do aeroporto «deveria ser uma decisão governamental, politicamente fundamentada, e não um simples expedito carimbo numa opinião pretensamente "técnica", que convenientemente já trazia uma conclusão (política).» Já em Novembro, Tiago Mendes havia referido que a decisão «é eminentemente estratégica e política».
A ler: O mito dos estudos definitivos, por Ricardo Garcia
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Os estudos técnicos são pefeitamente válidos e duvido que eles (a esmagadora maioria) estejam inquinados à partida, como afirmas. Em relação ao «caso Ota» a resposta é simples. Alcochete tinha sido colocada de parte há anos atrás, pela própria Força Aérea, fim da história.
ResponderEliminarO que preocupa é a utilização que fazem dos estudos. Perfeitamente desconexa de um enquadramento estratégico. O estudo afirma que ganha 4 a 3. Que seja. Mas a questão dos custos é muito duvidosa e 200 milhões de euros não são "nada", quando se está a falar de milhares de milhões de euros. Qual é o real custo de construir uma ponte que nem existe em projecto? Qual é o real custo de fazer aquele desvio para o TGV e outros combóios? Nem sei se terão calculado, sequer, esses factores (mais outros que Vital Moreira questiona) e nesse caso a "vitória" seria uma derrota 3-4. E claro...falta o estudo ambiental em relação à biodiversidade e às águas (a ideia de Margem Sul "jamais" estava relacionada com isso) - 2 a 5? Who knows. Não é que o estudo esteja inquinado ou seja mau. É um estudo, de muitos que deveriam ser feitos. O mal está no uso que se pretende fazer ele.
Não é por qualquer razão que o bastonário da Ordem dos Engenheiros vem reclamar que as decisões têm que ser precedidas de estudos técnicos completos.
ResponderEliminarO Governo anunciou o aeroporto na Ota sem ter todos os estudos nas suas mãos.
Mais uma vez a "pressa" da política tentou sobrepôr-se à razão dos factos...