Avenida Central
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A obrigação do amor. Temos uma Constituição que proíbe a discriminação em função da orientação sexual (há 4 anos), e leis que espelham a Constituição – à excepção do Código Civil e do que estabelece quanto ao casamento. Mas as leis, pese embora a sua enorme importância, não são tudo.

Por exemplo, todas as narrativas sobre o amor e a sexualidade que são apresentadas e transmitidas às crianças e aos jovens, em casa, na escola, nos livros, na tv, no cinema tendem a excluir, elidir, discriminar a homossexualidade. A generalidade dos pais, mesmo os pais mais aparentemente liberais, lidam muito mal com a possibilidade de os filhos terem uma orientação sexual diversa da sua ou daquela que consideram 'normal' e 'desejável' – ou, nos piores dos casos, 'a única possível'.

Dir-se-á que não se podem reescrever os contos de fadas e de príncipes e princesas. Mas é óbvio que os contos infantis são o que quisermos que sejam, e espelham muito claramente os nossos preconceitos e estereótipos, veiculando-os. Na recente campanha que ocorreu em alguns Estados americanos – Califórnia, Arizona, Florida -- para alterar as constituições respectivas por forma a impedir o casamento das pessoas do mesmo sexo, um vídeo mostrava uma criança que voltava da escola e narrava a uma mãe horrorizada a história que lá lhe haviam contado: o príncipe que casara com o príncipe. A campanha resultou.

A ideia de que o império da normatividade heterossexista em todas as narrativas dirigidas às crianças, das fábulas aos brinquedos, é uma espécie de garantia contra a homossexualidade parece um pouco disparatada demais para ser verdade. Como disparatada demais surge a ideia de que alguém fica homossexual por ouvir uma história de amor entre duas pessoas do mesmo sexo. Mas é a ideia que está subjacente à generalidade dos curricula quer escolares quer parentais – e que teve em Portugal a sua ilustração na célebre polémica de 2005 lançada por um artigo do jornal Expresso em que se 'denunciavam' (entre muitas aspas) os conteúdos de um alegado programa de educação sexual do ministério da educação e da apf em que um dos exercícios mais comuns seria pôr os alunos do secundário a imaginar uma viagem a um país em que a norma seria a homossexualidade.

O escândalo que acolheu esta possibilidade é bem demonstrador do estado lastimoso das coisas. Inimaginável, um país onde a maioria seja homossexual e os heterossexuais sejam a minoria discriminada – não, não queremos pôr os jovens a pensar, nem a questionar, nem por um instante, o império indiscutível da heterossexualidade e a indiscutível razão da discriminação. Era o que faltava. Não queremos, sobretudo, aceitar a possibilidade de que haja, entre esses jovens, quem necessite desesperadamente de se sentir menos isolado naquilo que sente, quem necessite de saber que não é uma aberração, que há no mundo muito mais gente a sentir o mesmo e que não há que ter vergonha nem desesperar.

Seja o que for que se julga estar a fazer pelas crianças e jovens quando se lhes recusa qualquer alusão que não seja negativa e até violenta à possibilidade de vivência de uma sexualidade não exclusivamente heterossexual, não é decerto de amor que se trata. Tenho poucas dúvidas de que se trata, precisamente, do contrário do amor. Um pai ou um educador que faz um jovem sentir que só o respeitará e amará se amar alguém de sexo diferente está a dizer que não o ama nem o respeita pelo que é, mas apenas pelo que quer ele seja – uma espécie de prolongamento de si e dos seus desejos e frustrações. Não há nada de mais egoísta e de mais cruel.

Ilustrando o contrário desse egoísmo e crueldade, o mayor republicano de San Diego (Califórnia), Jerry Sanders, assumiu, num discurso emocionado na véspera das eleições americanas e do referendo californiano, que mudara de ideias acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ao qual se opusera antes: "Não posso olhar nos olhos a minha filha Lisa, que é homossexual, e dizer que a relação dela, a vida dela, tem menos valor que o casamento que partilho com a minha mulher." Sanders descobriu, embora tarde, que não é possível defender a teoria do 'separate but equal', porque quando separamos, quando afastamos, estamos a dizer que não é igual. Sanders descobriu, embora tarde – mas a tempo – o que é o amor e o que ele implica.

[Fernanda Câncio é jornalista no Diário de Notícias e autora do blogue Jugular]

11 comentários:

  1. Mas que grande texto! É a nata da nata da elite pensante portuguesa no "nosso" Avenida Central. Parabéns Pedro e força nisso por muitos anos!

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  2. Uau! Fantástica como sempre, f.

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  3. «porque quando separamos, quando afastamos, estamos a dizer que não é igual.»

    É isso mesmo Fernanda. Quem fala em dar outro nome ao casamento entre pessoas do mesmo sexo não sabe o que diz e está a demonstrar a homofobia que lhe corre nas veias.

    Texto maravilhoso este com que nos brindou. Agora que sei onde escreve prometo acompanhá-la.

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  4. Gostei, Fernanda. Volte mais vezes.

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  5. Não posso estar mais do que em total desacordo.
    É óbvio que o casamento entre seres humanos de sexo diferente, pela sua história, pela sua tradição, pelo facto de poder permitir a reprodução biológica in natura, sem necessidade de adopções ou fertilizações in vitro (admito que é um argumento secundário, mas não deixa de ser relevante) é diferente da união afectiva entre casais de gays e lésbicas.
    O que é diferente deve ser tratado de forma diferente e não de forma igual. O princípio da igualdade assim o exige.
    Não me choca a consagração de um regime jurídico de união civil mais geral que consagre direitos legais de herança, acesso a hospitais, etc.. que abranja todas as pessoas (homossexuais, lésbicas ou heterossexuais) que vivam em conjunto de forma regular.
    A birra em querer à viva força chamar de casamento a um relacionamento que não tem "densificação" suficiente para o efeito é, a meu ver, contraproducente.
    Na sequência de um diálogo que travei com um homossexual na caixa de comentários do "5 dias", parece-me que o caminho a adoptar deveria ser mais o da demonstração na sociedade de que o relacionamento entre gays e lésbicas também é sério e estável (e menos as palhaçadas ridículas das marchas orgulho gay que provocam na opinião pública mais riso e chacota do que reflexão).
    Mesmo que seja injusto e até não verdadeiro o que é certo é que a ideia que as pessoas têm sobretudo dos homossexuais (menos das lésbicas) é que são pessoas promíscuas que participam regularmente em swings entre si, turismo sexual a países como Holanda, Brasil, Tailândia, etc, etc.
    Parece-me a mim que querer mudar tradições milenares e costumes por decreto não é lá muito inteligente. Ganhem primeiro o respeito e a consideração da sociedade e depois reclamem mais direitos.

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  6. Srª Fernanda Câncio, parabéns pelo excelente texto.
    Quanto ao comentário do senhor mrc, é o que há de mais comum. A total falta de respeito pela diversidade. Não concordo em nada com a opinião dele sobre as marchas de orgulho gay. Se não estão lá pessoas que aos olhos dele poderiam não ser “palhaços” é porque, em muitos casos, estas pessoas ficam com medo de perder o emprego, desapontar os pais, desagradar alguns amigos e mantêm a sexualidade delas muito escondida.
    Mas há de se realçar que são estes “palhaços” que dão as caras que conseguiram muitos avanços.
    De um modo geral, a pessoas vêem estas personalidades gays que a midia gosta de destacar e tomam a parte pelo todo. Mas não é este mesmo raciocínio que usam quando se trata de heterossexuais. Para citar um caso recente e de grande destaque no jornais, podemos falar do “bom” pai austríaco. Hetero, casamento estável (afinal ele continuava casado), filhos (que é o que determina o casamento no pensamento do sr MRC, afinal, tem que se poder procriar – “pobres” dos casais heteros que têm problema de fertilidade – e ter filhos) e no entanto achou “saudável” manter a filha na cave para atender ao apetite sexual dele e com quem teve vários filhos. E nem por isso, ouvimos as pessoas a dizerem que todos os heteros são perversos.
    Então, tem que ser casamento sim (a lei é para permitir que se possa casar e não para obrigar a todos a casarem – que fique claro. Pois há quem não queira). Um casal hetero que não faça uma cerimónia religiosa tem casamento na mesma.
    Acho que os religiosos têm todos os direitos de não concordarem e falarem mal dos relacionamentos gays, desde que restritos aos seus templos e aos seguidores que concordaram a participar daquela comunidade. O que não podem é querer que o país inteiro professe da mesma fé.

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  7. Caro mrc,

    Os seus argumentos não se distinguem dos que outros utilizaram em tempos para suportar a proibição do casamento interracial.

    Lamento os estereótipo que usa para caracterizar. Revelam preconceito que talvez advenha da não convivência com homossexuais ou, mais certamente, do facto dos homossexuais que conhece nunca lhe terem revelado a sua orientação sexual.

    Se já se mexeu em tradições milenares ou seculares como a pena de morte, a escravatura, o racismo, a xenofobia porque não empreender mais uma batalha em nome do cabal respeito dos direitos, liberdades e garantias de cada ser humano?

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  8. Caros Pedro e Cláudio Luiz,

    Agradeço, desde logo, a forma civilizada como responderam ao meu comentário, algo raro em blogs pró-direitos dos gays na qual tenho deixado mensagens nos quais passam logo ao insulto e à ofensa pessoal ao invés de discutirem a questão de fundo.

    Quanto à questão de fundo, existem mesmo discordâncias entre nós. Para mim e para a maioria das pessoas (veja-se recente sondagem feita em Portugal e vitórias dos plebiscitos em vários estados dos Estados Unidos) casamento é uma união entre 1 homem e 1 mulher e ponto final. Não se alteram tradições milenares só porque um grupo minoritário da sociedade envia mails para os deputados ou fazem lobby no sentido da consagração daquilo que consideram ser os seus interesses.

    Cláudio, de facto, devo ter muito azar com os homossexuais que conheço que se caracterizam efectivamente pela prática habitual de turismo sexual, entre outros, para o Brasil. E mesmo os casais de gays que conheço praticam habitualmente o swing com outros que, por vezes, nem conhecem.

    Quanto à questão religiosa, destaco que um dos argumentos que foi bem acolhido, por exemplo, no Estado da Califórnia, a propósito do último plebiscito foi precisamente o argumento da intolerância pró-homossexual que resultaria da consagração legal do casamento homossexual.
    A questão tem a ver com a criminalização de comportamentos ditos homofóbicos que incluem os chamados "delitos de opinião". Por outras palavras, quem é contra o casamento gay cometerá um crime ou adoptará uma conduta ilegal. Isso significa, em última análise, que as Igrejas não poderão pregar que a homossexualidade é algo contra-natura e que Deus condena a homossexualidade porque se o fizerem estarão a promover actos ilegais ou até criminosos.
    Se calhar, pretendem até, em última análise, fazer apagar as partes do antigo e novo testamento onde se condena expressamente e sem quaisquer dúvidas a homossexualidade.
    Isto para dizer que o que está em causa não é o querer obrigar todos a professar a mesma fé, é antes o ter a certeza que todos poderemos ou não professar fé diferentes sem que nos chamem homofóbicos ou nos promovam queixas-crime.

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  9. Sr. MRC, educação é uma coisa que se aprende. Embora ache que ouvindo-se com frequência que se é uma aberração e o que de melhor que pode acontecer é a morte, não seja fácil manter a serenidade às vezes.
    Não sou um profundo conhecedor da bíblia, mas sei que alguns estudiosos não partilham da opinião que haja uma condenação declarada a homossexualidade no livro sagrado.
    E acho muito complicado ler certas coisas sem contextualizar a época e o momento histórico.
    Se formos falar de tradição, então temos que considerar o casamento indissolúvel. Que sexo é SÓ para procriação. Quantos casais heteros o senhor conhece que cumpre a risca a tradição?
    A igreja católica levou 200 anos para se “desculpar” com Galileu. Pois já não dá para manter a teoria de que a Terra é plana, o centro do universo, com o Sol girando ao seu redor. E ele foi quase parar à fogueira por conta de suas ideias. Ainda chegará o dia de terem que rever outros conceitos.
    Quanto a fazer swing, turismo sexual o senhor que dizer que é só uma pratica homossexual, não existem casais heteros que praticam swing, homens heteros não vão pró Brasil e para alguns países da Ásia para turismo sexual, é isto que o senhor afirma? Sendo de homos e heteros será uma questão do ser humano e não de uma determinada orientação sexual.
    As religiões têm sempre as prerrogativas sagradas de definirem tudo. Se se exige que se restrinja o culto à sua comunidade estamos sendo autoritários e ditadores, mas se obrigam a todos a professarem uma fé, mesmo que não se acredite, estão apenas usando de suas prerrogativas sagrada. Pois… simples assim.

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  10. Caro mrc,

    Este não é um blogue pró-direitos dos gays, mas apenas um espaço em que se denunciam as graves limitações dos direitos, liberdades e garantias a que alguns cidadãos ainda são sujeitos em Portugal.

    Não dou ao argumento da "maioria das pessoas" e da "tradição" mais relevância do que aquela que devem ter neste debate. Aliás, não são argumentos válidos para a questão de fundo que é saber se os homossexuais devem ou não ter o direito a casar-se entre si.

    Eu acredito que a aplicação da pena de morte é censurável independentemente da opinião da maioria e da tradição. Mesmo que a maioria e a tradição sejam a favor dessa prática, a pena de morte continua a ser indesejável.

    Aquilo a que chama "delitos de opinião" têm os mesmo valor para os gays que têm para os pretos e não me parece minimamente aceitável que se questione a apologia do racismo. Então, porquê aceitar a apologia da homofobia?

    Meu caro mrc,
    Bem sei que a religião cristã e, em particular, a Igreja Católica têm experiência de obrigar a todos a professar a mesma fé. Aquilo que defendemos aqui é precisamente o seu oposto: quem quiser casa-se segundo as regras do Antigo e do Novo Testamento e quem quiser casa-se de acordo com as regras do Estado que não têm que decalcar as regras da Biblía ainda que essas sejam as preferidas da maioria. É uma questão de direitos constitucionais lamentavelmente adiados às mãos da hipocrisia política.

    Cumprimentos.

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  11. Outro dia ouvi numa emissora de TV aqui no Brasil o argumento de que se morrem cinco gays por dia, morrem 50 heteros. Argumento utilizado por um “cristão”. Pura retórica vazia, com falhas de lógica. Deveríamos aplicar o silogismo para verificar a veracidade dos argumentos. O que quer dizer, é necessário um paralelo que seja verdadeiro: se cinco gays morrem vítimas de ataques contra gays e 50 heteros morrem vítimas de ataques contra heteros, então morrem mais heteros do que gays vítimas de suas condições sexuais. Essa não é a realidade; logo, a lógica está comprometida e o argumento é falso. É vil, cruel, o uso desses falsos argumentos (ou argumentos ilógicos, se preferirem) para se manter a permissividade, para que gays continuem sendo mortos simplesmente por serem gays.

    Argumentos ilógicos também se aplicam à união gay. Vivi um casamento estável durante 12 anos. Foi tempo o suficiente para que a família do meu cônjuge começasse a se incomodar com a minha presença, uma vez que ele vivenciava uma ascensão econômica cada vez mais confortável. Ignoravam a minha contribuição para tal estabilidade. Ele era fraco, não reconhecia na nossa relação um contrato de casamento e sucumbiu à pressão familiar. Claro, a relação se desgastou e acabou. Meu prejuízo (financeiro) foi imenso e o tempo de vida gasto foi difícil de recuperar. Hoje, moro em minha casa e meu atual cônjuge mora em sua. Enquanto não sai o ‘casamento’, não vamos morar juntos, pois não pretendo investir, despender um grande aporte financeiro, ou empregar um projeto de vida, em um lar que poderá ser desfeito por coerções familiares, ou de outra ordem social e legal (como a herança). Essa situação de separação faz com que eu e meu cônjuge nos sintamos em um estágio intermediário na relação, já deixamos de ser meramente namorados, mas ainda não concretizamos a relação.

    Sei que é um exemplo pessoal, mas os exemplos são ilustrações. Ilustração é um dos recursos utilizados em argumentação. Ela serve, aqui, para demonstrar, por uma narrativa, um dos aspectos do prejuízo que a falta de uma lei pode causar. Talvez eu seja capaz de compreender que os heteros não consigam se colocar emocionalmente no lugar dos gays para tentar entender ou aceitar as reivindicações, afinal de contas eles não passam pelo que passamos, é fácil se eximir da culpa. O que não consigo entender é como argumentos tão ilógicos justifiquem tão cruelmente tantos danos a tantos outros seres humanos.

    Cada vez que vejo qualquer forma de cerceamento a direitos, quaisquer que sejam, entristeço.

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