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Cuba no Meu Moleskine

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Igreja de Trinidad

Havana, 12 de Agosto de 2008 - «Os cubanos não o querem mais!», assim mo dizem, em discurso directo, numa surdina que se interpõe à verborreia oficial da utopia. A pobreza, miséria mesmo, invade-nos o olhar com a mesma naturalidade com que a música nos embala os ouvidos. A corrupção e os mercados paralelos multiplicam-se em todos os sectores da sociedade. Estranha ironia, o dinheiro obtido de forma subterrânea, o maléfico capital, é o traço distintivo entre aquelas gentes forçadas à ditadura comunista. Quem paga, tudo consegue naqueles lugares que nos diziam serem quimera de desenvolvimento fraterno.

No Hotel Ambos Mundos fica o quarto que já foi de Ernest Hemingway e que agora se visita como museu. Pedem-me 2 CUC (Peso Convertible Cuban), mas ofereço metade e deixam-me entrar. Aqui tudo se negoceia e, com grande probabilidade, nunca aquele dinheiro entrará nos cofres do Estado para ser distribuído por todos.

Ainda há tempo para uma visita à Bodega del Medio. A taberna fica nas imediações da Havana real que não consta das visitas oficiais dos turistas. Dizem-me aqui que se dispensam as eleições porque «os líderes sabem bem o que o povo quer». Confesso que não consigo deixar de me enternecer com tudo isto do mesmo modo que me enternece a ingenuidade cândida com que alguns falam desta Cuba em Portugal. Há qualquer coisa de perverso quando defendem e elogiam um sistema político, educativo e de saúde onde os profissionais não são mais que máquinas devotas a um regime com o qual tantas e tantas vezes não têm qualquer afinidade para lá do instinto de sobrevivência. Aqui não há direitos, não há greves, não há salários acima da inflação nem há liberdade de expressão.

Partimos de Havana. Trago na retina a imagem da criança que veio pedir-me a caneta com que escrevo. Não lhe dei a que trouxe para escrever neste moleskine, mas entrego-lhe outra que guardo no bolso. Pediu-me também a camisola e algum dinheiro para comer... para matar uma fome que não se alimenta de propaganda nem utopias e, ainda menos, de tiranas teimosias.

Trinidad, 14 de Agosto de 2008 - Chegámos à mais bela das cidades cubanas. Aqui o tempo parou. Encontramo-la tal como fora construída no tempo dos colonos espanhóis. Nesta «terra dos iguais», vemos um escravo dos novos dias desfazer-se em suor para transportar um turista ou uma espécie de executivo (?) pelo paralelo irregular das ruas tórridas do verão de Trinidad.

Partimos pelas estradas velhas de um país que floresceu até aos anos oitenta graças ao dinheiro que era artificialmente injectado pela URSS. No dia em que o comunismo teve que defrontar-se com o mundo real, a necessidade de produzir na medida do que se consome tornou o fracasso do igualitarismo evidente.

Na versão oficial ainda há espaço para os anti-heróis, inimigos que se querem apoderar da maior riqueza do povo que, daquele povo, não é mais do que a não-liberdade de viver na igualdade da penúria. A única coisa que não se imputa aos americanos é a aparente inexistência de ricos por aquelas terras. Tudo o resto, é culpa deles e do maldito embargo, dizem-nos...

O silêncio que se exige no mausoléu que construíram para El Che em Santa Clara deveria ser regenerador. Cada um dos revolucionários devia aproveitá-lo para reflectir sobre a miséria e a escravatura a que a ditadura comunista vem condenando irremediavelmente todo um povo.

Braga, 16 de Agosto de 2008 - Optei por transcrever algumas das ideias cruas que fui vertendo no meu moleskine ao longo destes dias. Para lá do desencanto com a miséria profunda, registo com grande apreço a sinceridade do povo, apenas sentida nos subúrbios da oficialidade, a fantasmagoria da História, vertida em repetidas loas à versão que consta, e a beleza dos monumentos, invariavelmente herdados dos regimes anteriores. Quanto ao resto, nem Cuba nem o comunismo têm o encanto que lhe apregoam.

2 comentários:

  1. É curioso...Muita desta miséria e degradação encontrei-a nos EUA aquando da minha última visita...
    E não têm um embargo opressivo sobre eles.
    Mas é muito mais fácil cair sobre Cuba do que sobre outros, tal como a grande e "democrática" Rússia.
    A tal que iria regenerar-se depois da queda do comunismo.

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  2. Pedro não será "Bodeguita del Medio"?

    O mal não está na politica. O problema é o povo, ou antes a natureza humana, que faz com que cada indivíduo queira sempre mais para si. Assim deturpa o sistema, transgride as regras, molda a filosofia, e altera os comportamentos.
    Então a "solução" seria manter a política e mudar o povo... mas qual povo? Que povo se adapta a isso, sem ser pela força? Deixem-nos falar livremente (eleições) e talvez se apercebam que nenhum povo quer viver assim!... Como o cubano também já não quer.
    Ninguém quer politicos mentirosos e corruptos, que prometem para chegar ao poder e depois não cumprem o prometido, como nós também temos, até como 1º ministro, como Cuba tambe´m teve muitos. Mas pior, muito pior, é querer falar, querer mudar e não poder...
    1 abraço

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