[Avenida do Mal] Cinzas de País Cremado, Deitadas ao Mar

Ardem os montes em Novembro tão estranhas que se tornam as nuvens que deviam ser de chuva. Ao longe, da janela do meu quarto, vejo a Cabreira a arder num Verão de S. Martinho que já não surge isolado como uma aberta durante o Outono. É um prolongar em apêndice de estações atípicas, secas e, por si só, confusas. Mal habituados estamos nós, os lavradores e begueiros de FAMEL estacionada em frente da taberna. Não tendo que fazer e pisadas as uvas, encerrados os lagares de miséria, alambiques de clandestinidade, sem feitura de bagaço que lhes ocupe a cabeça com coisas de menos prejuízo, botam-se de braguilha aberta e isqueiro na mão, a iluminar os montes com labaredas. "Queimadas" que dão coisa grave, dirão, por pura ingenuidade dos atiçadores. Era só para renovar o pasto a chibos poupados pela brucelose e pagos, ou não, pelos fundos europeus... Mas em grande parte, as pinceladas de lume que se vêem ao longe, fazem-se contra o tédio e pelo aparato que se lhe associa. Pelo circo montado e o carro de bombeiros, como pantera vermelha, a saltar por entre o círculo de fogo. Soldados de paz impreparados que, por muita alma e coração que dão no trabalho, antes disso, lhes vai primeiro a pele e o boche com o fumo e o chicote das chamas.

Expõe-se assim, em aberturas de telejornal fora d'época, a condição de agricultores reduzidos ao horto e ao telemóvel dado pelo Governo Civil, desempregados da ruralidade portuguesa, paga com subsídios à malga de vinho e ao espancamento dos filhos. Um País de crianças, ruças e borradas de lama, que começam o dia com o mata-bicho - copo de baçago de manhã - num estômago que pedia chávena de leite e torradas. Igualdade de oportunidades virada do avesso numa nação que se diz de riqueza imensa em troncos de árvores e folhas, florestas a perder de vista. Mas vai-se o verde ano para ano com a calvice a destapar a moleirinha às montanhas e a pobreza às pessoas.

E descuidou-se a desgraça que se nos abate agora que, atordoados nem lhe ligamos em igual medida, porque é coisa de meses a meio do ano.Tanto era que ministros e nomenclatura associada gabaram-se, no estio, de emprestar aviões à Grécia, porque as coisas por cá estavam sossegadas, no permanente rescaldo do que tinham sido anos antes. Estivesse a máquina preparada ou não, sorte tivemos que o Verão que agora se prolonga foi naltura penteado de aguaceiros de vez em quando, noites estranhamente frias e ventos calmos. Prenúncio sossegado de coisa ruim. E não há agora quem lhe deite mão.

Resulta isto hoje porque me revolta ver bosques raros cremados ao longe e aldeias a perderem-se isoladas numa tundra forçada, despejadas da sua muralha de arvoredo. Arde com isso a sombra aos homens, e o abrigo de espécies fugazes à vista. Ardem recursos de futuro, em biomassa, ciência e lazer. Ardem lugares de ar puro e de virgindade humana. Sobra no fim, a eles e a nós todos, fragas rodeadas de urze e esqueletos de carvalho e pinheiro queimado. Trás-os-Montes, Minho e Barroso, por aqui, cada vez menos o que eram e a Portucel ainda os veste de um verde australiano.

Ora, negligenciadas as pessoas e paisagens vales acima, perdidas e tidas como felizes no inóspito e nas contrariedades, altura será também de questionar porque vivem os Bombeiros Portugueses, nas boas intenções que tenham, de gente inqualificada, mal paga e a tempo parcial. Porquê ainda voluntários e transportadores de macas? Porque é que um país que gabando-se da riqueza florestal deixa-a sujeita à pilhagem criminosa, ao inferno e à fuligem? Estranhas prioridades de orçamento, normais num país virado ao mar que o come, com o mesmo aquecimento global que o incinera por dentro.

6 comentários:

  1. Mais uma vez o melhor da Avenida Central

    La-Salete

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  2. Não me quero repetir.

    Assino por baixo, LA-Salete

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  3. Correcto e afirmativo.
    Mais um grande texto. o habitual.

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  4. Um texto mais uma vez muito bem escrito e interessante.

    Aproveito a “boleia” para dizer que acho que pode ser perigoso associar a vaga de incêndios aos agricultores. É que para os “urbanos”, para os que não vêem a Cabreira a partir da janela do quarto, os lavradores, os parolos que aparecem na televisão mal vestidos e desgrenhados quando o fogo se aproxima, são os culpados de tudo e mais alguma coisa.

    Confesso que acho absolutamente revoltante o argumento já esgrimido por alguns de que a conta do combate ao fogo deveria ser endossada aos proprietários porque os outros contribuintes não têm de pagar a defesa do património privado. Argumento demagógico e aplicável a todos os sectores da sociedade, mas que pode colher em determinados sectores.

    É verdade que a incúria e a tradicional mania portuguesa de não pensar nas consequências se traduzem muitas vezes em resultados desastrosos. E também é uma realidade que a Protecção Civil já lançou o alerta para as queimas e queimadas. Só que temo que, por a época de incêndios estar a acontecer num período atípico, se esteja a encontrar um bode expiatório para uma questão estrutural que continua por resolver.

    Os incêndios são um problema muito complexo, no qual não é possível determinar apenas um culpado. É inegável que:
    — existe uma indústria do fogo, que gira em torno dos equipamentos, das madeiras e do uso dos solos;
    — o Estado não cumpre o seu papel na manutenção de caminhos e da parte da floresta que está sob o seu cuidado;
    — os proprietários privados não limpam as matas, porque muitas vezes se trata de uma população envelhecida e sem poder económico para contratar quem faça o trabalho, a viver em zonas desertificadas;
    — ainda não foi implementado um modelo de negócio que garanta a sustentabilidade da floresta;
    — o ordenamento do território e da floresta é mau, mesmo muito mau;
    — os bombeiros têm falta de preparação e às vezes do material básico.

    É também absolutamente falacioso pensar que a questão se resolve com mais meios aéreos, como clamam as populações em aflição, com os políticos em pose de circunstância a dizer que sim, que o avião vem já a caminho... Os especialistas estão fartos de alertar que os meios aéreos são importantes na fase inicial dos fogos, mas depois têm uma eficácia residual.

    Alguém tem presente o perfil do incendiário português?
    Existe um estudo efectuado pelo Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais e pela Universidade do Minho que indica que existe uma prevalência muito baixa de piromania entre os incendiários e que a maior parte das situações de fogo posto em zonas florestais teve por base um desejo de vingança (pessoas com baixa tolerância à frustração atearam fogo a algo que pertencia ao suposto causador dessa sensação). O crime foi perpetrado, na maior parte dos casos, por pessoas com um baixo nível de escolaridade (até ao 6.º ano), trabalhadores não qualificados da construção civil ou da agricultura, e perto do local de residência.

    O mesmo trabalho salienta que há diferenças a ter em conta que os incendiários “urbanos” e os “rurais”. Os das zonas urbanas têm ligação à toxicodependência, apresentam maior grau de perigosidade e de psicopatia. Nos das áreas rurais existe maior presença de perturbações mentais, nomeadamente atraso mental ou esquizofrenia, e consumo de álcool.

    Estas questões continuam a ser adiadas de ano para ano, à espera que o S. Pedro ajude. Aposta-se no circo mediático de fazer desfilar os contingentes de combate ao fogo perante as câmara de televisão... Usam-se placebos para aliviar as consciências...

    E os meios de comunicação social andam entre o 8 e o 80: ou passam 24 sobre 24 horas em cima do acontecimento, a dizer barbaridades, ou fazem desaparecer o assunto das agendas. Tal como nos fogos, depende do vento...

    Já viveram a experiência de acordar a meio da noite com alguém a gritar que o fogo se estava a aproximar e que era preciso partir? Já tiveram de, em segundos, pensar no que é que queriam pôr a salvo? Eu já. E só levei o portátil....

    (Sobre estas questões ver http://veraoverdeorg.blogspot.com/2006/05/o-fogo-na-comunicao-social.html e
    http://jn.sapo.pt/2006/02/21/sociedade/impacto_televisao_estudos_conclusivo.html)

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  5. A problemática dos incêndios já não é nova.
    Não podemos culpar o tempo pelas ocorrências mais ou menos graves com que nos deparamos no momento, nem muito menos os agricultores.
    Ninguém melhor que os agricultores protege os campos e a florestas. Mas, quando o agricultor abandona as terras, surgem logo os incêndios.
    As descontinuidades florestais constituídas pelos campos de cultivo e pastagem de animais, são barreiras naturais que impedem a progressão dos fogos. O Governo de António Guterres, deu incetivos aos agricultores para transformarem tais descontinuidades, em floresta. O resultado está à vista...
    Os meios aéreos, apenas fazem sentido no início do Fogo, seja no combate para o combate directo quando o fogo está a nascer, seja para o transporte de brigadas especiais. Fora disto, têm importante efeito psicológico para aumentar o share dos telejornais.
    Os Canada air, foram desenhados para a floresta canadiana que é constituída apenas pelos substratos herbáceo e arbóreo. Infelizmente, não existem aviões desenhados para o combate de fogos mediterrânicos, uma vez que a flora existente forma um contínuo entre os substratos herbáceo, arbustivo e arbóreo, facilitando a progressão dos incêndios.
    Já repararam que de cada vez que há uma grade incêndio, o nosso governo anuncia logo apoios para as pessoas plantarem logo a mesma espécie no mesmo sítio? ou seja, a primeira preocupação do nosso governo é ajudar a criar condições para que a catástrofe de repita dentro de 15 - 20 anos. Nunca vi um político português em tais circunstâncias, a ter a coragem de desafiar os agricultores, técnicos e governantes a repensarem o sistema de produção florestal...
    porque é que as florestas das indústrias de celulose não ardem assim? É que certamente estas entidades encaram o sector da forma empresarial e rodeiam-se de quem sabe do assunto.
    Se algo esta mal, é devido à classe política que em vez de se rodear de assessores de reconhecido mérito nas várias matérias, rodeiam-se de yes-men, subservientes e mais obedientes que inteligentes.

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  6. Cara Lois Lane e Zé de Braga. Não culpo os agricultores no meu texto. Simplesmente aponto erros e negligência total de um país face à sua paisagem e recursos naturais e que nunca passou por uma política de floresta efectiva nem pela profissionalização das coorporações de bombeiros. E com verdadeiros laboratórios nestas áreas, que impedissem este tipo de catástrofes, envolvessem Universidades como a UTAD ou outras vocacionadas. É que por muito coração se ponha a resolver n'altura, a massa cinzenta e crítica do país dorme o resto do ano. Ficamos todos expostos a interesses lobbistas da celulose e à maneira como alimentam os "loucos e pirómanos" que lhes arranjam mais áreas p'ro eucaliptal.

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